Eu acho através da descoberta do furo

Yellow Trees - Yayoi Kusama (1992)

Je trouve à trouvers le trouvaille de trou
Eu acho através da descoberta do furo


Trabalho apresentado na I Jornada de Psicanálise da Associação Psicanalítica de Itajaí.

Inicio minha apresentação dando os parabéns à Associação Psicanalítica de Itajaí por este dia especial, no qual se realiza sua I Jornada de Psicanálise. Me sinto honrado em participar desta mesa de trabalho, e agradeço especialmente ao Davide Chareun, pelo convite, o qual me suscitou imediatamente uma interrogação: o que é instituição?

Esta questão é feita diretamente a partir do cerne desta jornada cujo tema é “A instituição na formação do psicanalista Lacaniano”, onde extraio daí uma pista, uma clue, como se diz no inglês: a instituição é um elemento de formação. Não por acaso, tal tema me remeteu aos fundamentos da psicanálise, os quais Lacan aborda em seu ensino diretamente  durante o ano de 1964, que constitui o nosso Seminário 11, e que inicia, justamente, falando a propósito da instituição. Em específico, de sua excomunhão maior realizada pela Associação Psicanalítica Internacional, a IPA. Pretendo, com esta apresentação, colocar em foco alguns pontos que me chamam a atenção na leitura do primeiro capítulo deste Seminário, a lição de 15 de janeiro de 1964.

Pois bem, em suma, a excomunhão da qual se trata, foi a censura que Lacan recebeu a fim de que jamais, a partir de então, voltasse seu ensino à formação de analistas, atividade a qual ele diz ter dedicado sua vida. Mas Lacan diz um pouco mais: diz que, ainda assim, reconhece o elemento de cômico puro, do humor, por ver aí, no modo como se sucedeu a excomunhão, o surgimento dum objeto velado por natureza cujo qual detém a verdade do sujeito. Objeto o qual é por intermédio da função analítica que se pode desvelar. Tal objeto, Lacan o remete ao fundamento, identificado, no registro religioso, ao pudendum, que é a parte externa do aparelho genital. Este objeto, em minha leitura, para dizer de uma vez, é o falo. Topologicamente, o falo tomado como objeto trata-se do falo imaginário, lugar do desejo da mãe, que põe o sujeito na dialética do ser ou não ser em consequência de se deparar com a falta no grande Outro. É isto que o grafo do desejo nos mostra: no apelo que se endereça e simultaneamente constitui o grande Outro, o ser humano passa pelo desfiladeiro dos significantes, o que faz com que a demanda se desgarre totalmente da necessidade, visando, a demanda ao grande Outro, não um objeto de necessidade, pois este, escreveu Freud, está para sempre perdido, mas amor. Demanda é sempre demanda de amor. Ser amado pelo Outro. Em última instância, o que o sujeito demanda é signo. 

O falo imaginário, tomado como objeto, captura o sujeito na relação de alienação triádica criança-falo-mãe. Dito de outro modo, o sujeito se aliena diante do falo imaginário como objeto do desejo materno e se situa no que Lacan chamou, curiosamente, de inferno. Esta relação imaginária, em que o sujeito se faz de falo, o objeto que supostamente completará a mãe, mas que, como disse, está para sempre perdido. Pois é no grande Outro que o sujeito se depara com a falta, pelo fato de que o grande Outro, lugar da fala, do conjunto do sistema significante, é castrado, não tem o significante que significa o sujeito. É esta a resposta que o sujeito recebe na linha superior do grafo, no lugar onde se situa o S de A barrado, o significante do grande Outro castrado.

Em outras palavras, o sujeito não é um significante, mas efeito significante. O sujeito é barrado, dividido, castrado em seu ser, que é propriamente a impossibilidade de obturação do grande Outro, por sua constituição se dar na e pela linguagem, interdito das cadeias significantes, entre ser e não ser. A falta é estrutural, o que quer dizer que não possui relação com qualquer tipo de ordem natural, mas com a instituição da ordem simbólica. É desta forma, me parece, que a instituição se constitui como elemento da formação do psicanalista. Ou seja, na instituição da falta.

Para prosseguir com a excomunhão, diz Lacan na página 13, “Não é mais uma questão de pudendum. É questão de saber o que, da psicanálise, se pode, se deve esperar, e o que se deve homologar como freio, senão como impasse”. Que é que se pode esperar, e o que se deve homologar como freio, na psicanálise? Ou mesmo, situando aqui a interrogação de Lacan: o que é a psicanálise? Interrogação esta que diz ele ser uma questão-morcego, para sempre introduzida, isto é, que retorna insistentemente, à ser examinada, diz Lacan, au jour, ao dia, ao claro. Por isso a retomo à la journée, na jornada, pois se trata de para sempre introduzi-la: o que é a psicanálise?

É em decorrência da introdução desta questão que nós, analistas, podemos mesmo nos perguntar o que é instituição? Cabe, então, amarrá-la à questão-morcego para abordar da maneira que nos é própria, ou seja, no registro do inconsciente. 

Que quer dizer nos perguntar “o que é instituição?” no registro do inconsciente?

Gostaria, antes, de novamente colocar a atenção no título da Jornada para destacar isto: a formação do psicanalista. O psicanalista é uma formação. Parece-me que é em decorrência disso que se pode falar de desejo do analista. Uma formação, que não se dá simplesmente pelo acúmulo quantitativo de conhecimento, pois este está no nível da informação. Trata-se antes de uma formação que se dá pela fala, uma vez que implica aí a escuta. É a formação do analista a que se visa através do famoso tripé da psicanálise (análise pessoal, teoria psicanalítica e supervisão clínica), e não à informação, como escreve Freud a propósito da psicanálise selvagem. Pois se se tratasse de informação, bastaria que os analisantes, e mesmo dentre estes, nós, analistas, assistíssemos à palestras de psicanálise para nos manter informados, para que a dimensão da cura emergisse in natura. E não é bem assim. Não é bem assim porque nós, humanos, somos seres falantes. É por sermos falantes, por termos esses furos a que chamamos boca e orelha, que falamos em formação do psicanalista, ou mesmo de transmissão da psicanálise. Pois que o que produz o furo é o significante.

Bem, durante o fatídico encontro sobre a excomunhão, Lacan lembra uma frase de Picasso, “Je ne cherche pas, je trouve”, “Eu não procuro, eu acho”, para daí tirar dois domínios da pesquisa dita científica: aquele em que se procura [cherche] e aquele em que se acha [trouve]. Situo a informação no domínio da procura, do cherche; enquanto que a formação se dá pelo domínio da descoberta, do achado, do trouve. E se a formação é do domínio do trouve, da descoberta, é porque há nele o trou, o furo. Afinal, é isto que quer dizer que o significante faz furo no real, lugar próprio da praxis psicanalítica, em que esta, a praxis, Lacan a situa, na página 14, como designando “uma ação realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico”.

Este significante que faz furo no real é o falo. Não o falo imaginário, pois este é tomado como objeto, objeto do desejo da mãe. Tomar o falo na dimensão imaginária é da ordem da ilusão de óptica, situado como o reflexo do outro lado do espelho plano no esquema de Bouasse onde o sujeito se vê capturado pela imagem do outro em que lhe dá integridade corporal por este invólucro a que chamamos eu, o moi, o eu imaginário. No entanto, o que mostra a experiência analítica é de que o sujeito não é o eu. O sujeito é furado, barrado, castrado em seu ser, pelo falo como significante da falta, que é o falo simbólico. É a instituição do falo simbólico que faz furo no muro da linguagem e retira o sujeito da relação imaginária entre o eu e o pequeno outro, para situá-lo na relação simbólica com o grande Outro, esta via que é exatamente a descoberta, o achado, o trouve de Freud: o inconsciente.

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