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Relatività - Maurits Cornelis Escher (1953)


Seminário realizado para a turma de Psicologia de Desenvolvimento II do professor Davide Chareun, no Centro Universitário Avantins, 4 de setembro de 2024.


Primeiramente, agradeço o convite feito pelo professor Davide para proferir este seminário. Foi com grande alegria que recebi o convite, feito num momento oportuno, em que marcamos de conversar sobre literatura; a respeito de um livro, em específico. Digo oportuno porque o livro é um objeto que serve como fiel companheiro aos que se debruçam para investigar a subjetividade. No entanto, confesso que me senti dividido entre a recusa ou o aceite do convite. Cogitei a recusa porque, num primeiro momento, pensei que não tenho experiências profissionais com a faixa etária dos adolescentes, seja na clínica como psicanalista, seja em outras atuações como psicólogo. No ano passado, trabalhei em uma rede municipal de educação como psicólogo escolar, com escolas do Ensino Fundamental 1, onde realizei o atendimento de crianças entre 6 a 12 anos e, eventualmente, seus responsáveis. Para além desta experiência, os atendimentos que realizei até então foram com adultos, geralmente acima dos 30 anos. Logo, cheguei à conclusão, neste primeiro momento, de que não teria nada para falar a respeito da adolescência.

Entretanto, conjecturei a possibilidade do aceite, e me coloquei à refletir. Uma questão se colocou, então: o que falar sobre a adolescência para uma turma de Psicologia do Desenvolvimento? A partir desta interrogação, pude articular já um primeiro vislumbre de onde me situar, pois a ênfase de minha questão recaiu não sobre a temática a ser apresentada, ainda que esta tenha sido definida como eixo central por onde deve circular meu discurso, mas recaiu no para quem a temática é apresentada. Este para quem, que busco enfatizar, é, desde já, um endereçamento. Quando se escreve uma carta, objeto já um tanto em desuso na atualidade, suplantado pelas novas tecnologias, há, indicados no envelope desta, o remetente e o destinatário. Remetente, aquele que envia; destinatário, aquele que deve receber a carta. 

Eis, portanto, que me vi articular a investigação que estou realizando no mestrado. A questão a respeito do destinatário emergiu pois o discurso analítico é distinto do discurso universitário. A distinção se dá, essencialmente, pela relação com o saber. Na universidade, supõe-se que o professor é aquele que sabe sobre determinado assunto ao qual foi contratado para ministrar aulas àqueles que não sabem, seus alunos. Ainda que essa ideia seja simplista demais, generalizando, parece funcionar desta maneira nas instituições escolares. Não somente o professor sabe sobre determinado assunto, mas sabe que sabe. E por saber que sabe, ensina ao aluno aprender a aprender. É isto, em suma, o que o professor faz quando passa a lista de referências bibliográficas e realiza a mediação com o conteúdo desta através das aulas. Enfim, é isto que estou chamando de discurso universitário. O discurso psicanalítico é outra coisa. Dado que a psicanálise é uma prática clínica, o psicanalista se encontra, de partida, numa posição de não saber. Espera-se que sabe que não sabe; pois se não souber que não sabe, estará perdido. Ao psicanalista, coloca-se esta posição de não saber sobre o que o outro vem de contar. Se dou esta volta toda é para, primeiro, me situar no discurso que aceitei realizar através deste seminário; segundo, para colocá-los nesta via sobre a qual quis deter minha ênfase, neste para quem, o destinatário.

Se lhes disse a respeito de uma posição de não saber frente ao que o outro vem de contar, é porque podemos extrair daí uma consequência fundamental: a de que se institui um lugar. Quando eu estava na graduação, uma pergunta feita pelo então coordenador do curso de Psicologia me marcou: "qual a função do psicólogo?". A resposta que venho elaborando à esta questão é de que a função do psicólogo é escutar. O que num primeiro momento parece óbvio, mas abre para uma outra questão: o que é escutar? O lugar instituído pelo outro que vem nos contar é este lugar de escuta. Somos, a partir deste lugar, o destinatário de sua fala. Aqui, então, como alguém que profere um seminário, estou, ao menos num primeiro momento, no lugar de remetente. E isto se dá em conjunção com a transmissão de uma mensagem. Para que se possa transmitir uma mensagem, é necessário que remetente e destinatário compartilhem de algo comum. Este algo comum é a estrutura da linguagem. Retorno, então, à minha pesquisa de mestrado, onde estou investigando a noção de estrutura na psicanálise. Especificamente, em um escrito do psicanalista Jacques Lacan, que se chama "Seminário sobre 'A carta roubada'". Carta, em francês, chama-se lettre, que é a mesma palavra para "letra". Eis o motivo para o aceite do convite de falar à uma turma de Psicologia do Desenvolvimento: a transmissão de uma letra. A experiência da prática psicanalítica revela que isto a que se chama subjetividade trata-se de uma singularidade, onde cada um, submetido à linguagem, deve lidar com a escolha, seja do aceite ou da recusa, da letra. Afinal, a estrutura tem sua fundação na letra.

"A carta roubada" é um conto de Edgar Allan Poe, literato estadunidense do século 19 que escreveu poemas e prosa de estilo soturno. Este conto em específico é do gênero policial. O conto inicia com a epígrafe de Sêneca “Nil sapientiae odiosus acumine nimio [Na sabedoria, nada mais odioso que a excessiva sagacidade]” (Poe, 1981, p. 211) e passa para a conversa entre dois amigos – o narrador e o detetive Dupin – que estão no gabinete de leitura do segundo, e versam sobre os crimes na rua Morgue e o assassinato de Marie Rogêt (dois outros contos de Poe). Entra o delegado de polícia de Paris, Monsieur G., e fala sobre um caso que requer reflexão e, dada esta condição, para Dupin, será melhor se examinado no escuro. O delegado diz que esta é outra das ideias “bizarras” (em inglês, odd) do detetive, e o narrador expõe ao leitor que o que é bizarro ao delegado são todas as coisas além de sua compreensão. O delegado inicia, então, a contar sobre o caso, apresentando-o como muito “simples”, mas escapa à compreensão da polícia devido aos seus pormenores “bizarros”. Dupin denota que talvez o mistério seja “simples demais”, “evidente demais”, e o delegado se põe a gargalhar, como se se tratasse de uma tolice.

Após esta primeira apresentação do caso, o delegado exige o maior sigilo, pois só de contá-lo à alguém implica na ameaça de perda do lugar que ocupa na atualidade. O caso é do roubo de uma carta nos aposentos reais, feita pelo ministro D., de uma pessoa da mais alta posição, a Rainha. Sabe-se que foi o ministro quem roubou, pois o roubo foi feito aos olhos da Rainha que, enquanto lia a carta nos aposentos reais, entram o ministro e outra personalidade de elevada posição, o Rei. A Rainha, na impossibilidade de esconder a carta às pressas, uma vez que desejava ocultar do Rei a carta, deixa-a sobre a mesa com outras cartas. O ministro percebe o segredo e a rouba, deixando outra carta no lugar. Com isso, realiza uma série de ameaças de desvelar a carta, obtendo poder de influência política sobre a Rainha. O narrador então conclui ao delegado: “[...] é a posse da carta, e não qualquer emprego da mesma, que lhe confere poder. Se ele a usar, o poder se dissipa”.

O delegado conta com pesar que “Durante três meses, não houve uma noite sequer em que eu não me empenhasse, pessoalmente, em esquadrinhar o Hotel D.”, onde reside o ministro, e que o próprio Monsieur G. junto de batedores de carteiras “Examinamos todos os cantos”, e fala seu método de esquadrinhamento, onde verifica cada detalhe do hotel. A recompensa oferecida pela recuperação da carta é exorbitante, o que faz com que o delegado não desista e, como revela, é este o motivo de seu encontro com o detetive, para pedir um conselho quanto ao caso. Dupin lhe aconselha que retorne ao hotel e realize uma nova e completa investigação. Depois, o delegado lê a descrição minuciosa que lhe foi feita da carta e se retira do gabinete, deprimido.

Um mês depois, o delegado retorna ao gabinete do detetive e encontra os dois amigos, após ter vasculhado novamente a casa do ministro e ainda assim não ter encontrado a carta, e diz que disporia de cinquenta mil francos a quem a obtivesse. O detetive então fala ao delegado que este assine um cheque com cinquenta mil francos e o entregue que, em seguida, lhe entregaria a carta, deixando pasmos o narrador e o delegado. O cheque é assinado e a carta, entregue. E então, depois da partida do delegado, Dupin explica a maneira como conseguiu a carta, que consiste no emprego de um método, que é, efetivamente, o método analítico.

O detetive começa a explicar o emprego do método analítico relembrando o jogo do par ou ímpar, que é realizado por dois jogadores, onde um deles fecha nas mãos determinado número de bolinhas e pergunta ao outro se é par ou ímpar. Se o outro acertar, ganha uma bolinha; se errar, perde uma. Dupin conta que conheceu um garotinho de oito anos exitoso como adivinhador, que tinha um sistema de simples observação e cálculo da astúcia dos oponentes. 


Suponhamos, por exemplo, que seu adversário fosse um bobalhão que, fechando a mão, lhe perguntasse: “Par ou ímpar?” Nosso garoto responderia “ímpar”, e perderia; mas, na segunda vez, ganharia, pois diria com os seus botões: “Este bobalhão tirou par na primeira vez, e sua astúcia é apenas suficiente para que apresente um número ímpar na segunda vez. Direi, pois, ímpar”. Diz ímpar e ganha. Ora, com um simplório um pouco menos tolo que o primeiro, ele teria raciocinado assim: “Este sujeito viu que, na primeira vez, eu disse ímpar e, na segunda, proporá a si mesmo, levado por um impulso a variar de ímpar para par, como fez o primeiro simplório; mas, pensando melhor, acha que essa variação é demasiado simples, e, finalmente, resolve-se a favor do par, como antes. Eu, por conseguinte, direi par”. E diz par, e ganha.


Dupin e o narrador concluem que é a partir da identificação do intelecto do menino com o de seu oponente que o menino consegue obter tantos êxitos no jogo e, a partir desta anedota sobre o jogo do par ou ímpar, nosso detetive estabelece a relação com o caso da carta roubada. Em um dos diálogos que o delegado tem com Dupin, o primeiro rebaixa a inteligência do ministro por este ser poeta. Para o delegado, todos os poetas são idiotas.  Dupin indica, ao narrador, o engano do delegado, que se considera engenhoso demais e, ao procurar a carta que estava escondida, considerou apenas sua própria engenhosidade; uma engenhosidade que representa a da massa, e questiona sobre as diversas artimanhas que o delegado imagina que o ministro teria realizado para esconder a carta, uma vez que seria a maneira que ele próprio, o delegado, teria escondido, ou o qual está habituado pelo exercício de suas funções.

Dupin diz ao amigo que é como poeta e matemático que o ministro raciocina bem; se fosse apenas matemático, estaria à mercê do delegado. A seguir, o detetive faz considerações que são preciosas à psicanálise:


Os matemáticos, concordo, fizeram tudo o que lhes foi possível para propagar o erro popular a que você alude, e que, por ter sido promulgado como verdade, não deixa de ser erro. Como uma arte digna de melhor causa, ensinaram-nos a aplicar o termo “análise” às operações algébricas. Os franceses são os culpados originários desse engano particular, mas, se um termo possui alguma importância – se as palavras derivam seu valor de sua aplicabilidade –, então análise poderá significar álgebra, do mesmo modo que, em latim, ambitus significa ambição, religio, religião, ou homines honesti um grupo de homens honrados. [...] Impugno a validez e, por conseguinte, o valor de uma razão cultivada por meio de qualquer forma especial que não seja a lógica abstrata. Impugno, de modo particular, o raciocínio produzido pelo estudo das matemáticas. As matemáticas são a ciência da forma e da quantidade; o raciocínio matemático não é mais do que a simples lógica aplicada à observação da forma e da quantidade.


O erro a que o interlocutor de Dupin alude é o de que a razão matemática é a razão par excellence. Estas considerações são preciosas à psicanálise justamente na medida em que toma a análise como lógica abstrata, e não como uma álgebra de aplicabilidade tal qual o leito de Procusto. Análise como lógica aplicada à observação da forma e da quantidade. É, ainda, com estas considerações – o jogo do par ou ímpar e a noção de análise – que Dupin desvenda o caso e encontra a carta; maneira pela qual deixaremos ao deleite e curiosidade do leitor em descobrir através da leitura do conto, uma vez que o essencial do que pretendi comunicar a respeito da narrativa, a saber, sobre o destinatário, está disposto neste breve resumo.

Meu discurso parece ir longe do que se propõe quanto a temática a ser proferida. Afinal, a turma leu o livro “A adolescência”, de Contardo Calligaris, onde este vai direto ao assunto da adolescência e o aborda magistralmente passando, principalmente, por uma leitura que me parece sociológica, ainda que busque estabelecer relações com a psicanálise. Este também não é, bem o sei, um curso de formação para psicanalistas, e talvez a maioria de vocês sequer tenham interesse em exercer a psicanálise. Meu intuito não é convencê-los de que o exercício desta prática é interessante. Se a subjetividade se dá singularmente, na medida em que é constituída pela relação com a alteridade, a escolha é para cada um. Meu intuito é promover uma reflexão, disse-lhes, a transmissão de uma letra. Esta letra é, mais propriamente, um símbolo: o ponto de interrogação. A escolha deste símbolo se dá porque, me parece, pode ser utilizado como uma espécie de chave, que pode ser utilizada na clínica, mas também nos diferentes campos de atuação. Colocado este ponto de interrogação sobre o campo da fala, quero deslocá-lo ao espaço-tempo.

Há uma forma comum de compreensão do espaço-tempo, que geralmente se ensina nas instituições escolares. Primeiramente, compreendemos como disjuntos, unidades separadas. Existe o espaço e existe o tempo. O espaço é então a tridimensionalidade da matéria, possível de parametrizar por meio de escalas de valores numéricos. O fundamento desta noção remete à Euclides de Alexandria, que estabeleceu a geometria como forma de enxergar a natureza e traduzi-la para padrões humanos. Aprendidos os conceitos de ponto, reta, triângulo, quadrado, círculo, etc., podemos aplicá-los para medir a terra, que é, etimológica e literalmente o que quer dizer geometria. Sua aplicabilidade é diversa, desde construções na engenharia civil à padronização de uma folha de papel sulfite. Com Descartes, há aplicação da métrica no plano cartesiano, composto pelos eixos das ordenadas (y) e das abscissas (x). O que nos deu a possibilidade, por exemplo, de guiarmo-nos através de GPS, e não mais pelos astros. Minha intenção não é de entrar em pormenores da utilidade prática da matemática, mas demonstrar seu uso enquanto capacidade de simbolizar a realidade e constituir o espaço. Espaço esse, note-se, tridimensional. A terceira dimensão está num outro eixo que atravessa o plano cartesiano e é denominado de profundidade. Aqui, há um ponto de distinção com relação à psicanálise.

Antes de falar sobre esse ponto de distinção, quero falar sobre o tempo. Comumente, concebemos o tempo como uma linearidade, também disposta sobre a métrica, e também sobre três dimensões. Passado, presente e futuro. Passado é o que veio antes, presente é o agora e futuro é o que vem depois. Cada dimensão só tem sentido em relação às outras duas. A métrica padronizada sobre a linearidade do tempo é chamada de cronológica, onde sua flecha vem do passado, um ponto de origem (pode ser o Big Bang, o Fiat Lux, ou mesmo o próprio nascimento etc.), passa pelo presente, o estado atual, em direção ao futuro, o ainda desconhecido vir-a-ser.

Já que estamos em uma aula sobre Psicologia do Desenvolvimento, podemos situar a ideia de “Desenvolvimento” nesta lógica de Cronos, em sua disposição métrica. E nesta, se interpõe a concepção buscada na área da biologia, atrelada à ontogênese e à filogênese. Respectivamente, a história do desenvolvimento do indivíduo de uma espécie e a história evolutiva da espécie. Neste sentido, o tempo se atrela ao espaço, pois há o desenvolvimento tanto na escala temporal, com a história do indivíduo e a história das espécies; quanto na escala espacial, com as alterações realizadas no organismo, seja de características genotípicas ou fenotípicas. O espaço-tempo é, assim, determinado como uma instância da ordem natural regido pela ideia de desenvolvimento normal, onde os desvios da norma são, consequentemente, patologias. Dessa forma, a adolescência pode ser considerada como uma faixa etária específica, dada como uma etapa da maturação onde se faz a passagem da vida infantil para a vida adulta.

No entanto, na leitura que realizo da psicanálise, o espaço e o tempo não ocorrem de acordo com a lógica formal, mas através de um ramo das matemáticas que se chama topologia. A topologia estuda relações entre lugares, em que o espaço é bidimensional e o tempo é lógico. O espaço topológico é bidimensional e não está disposto à métrica; suas duas dimensões são determinadas por vértices e arestas; onde os vértices são os lugares e as arestas são as relações entre estes lugares. O tempo é lógico e não linear, o que quer dizer que é demarcado pela oposição entre presença e ausência, numa ordenação que dá origem ao símbolo. Sua ordem é não natural, mas simbólica. A relação analítica, colocada em prática através da clínica, se dá por intermédio do símbolo, e não pura e simplesmente por uma experiência de dois corpos, onde, supostamente, aquele que ocupa o lugar de analista teria alcançado certa maturidade, ao menos o suficiente para servir de modelo para aquele que vem de contar. A relação primordial, para a psicanálise, não é entre mãe e bebê, mas mãe, bebê e o desejo da mãe; onde cada sujeito deve se situar com relação ao desejo do Outro. Dessa forma, a noção de adolescência não passa, necessariamente, pela adequação à uma faixa etária pré-determinada cronologicamente, mas a uma lógica que se põe para cada um, de maneira singular.

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