O corte e a Lei
Ao final de 1954 e até meados de 1955, Lacan proferiu o segundo ano de seus seminários públicos, agrupados sob o nome "O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise". Publicados com o título O Seminário - Livro 2, Lacan elabora o grafo que representa a intersubjetividade humana, grafo este denominado esquema L, composto por quatro vértices elementares (eu, outro, sujeito, Outro) e quatro arestas que estabelecem a relação entre os elementos. A relação entre o eu e o outro é estabelecida entre semelhantes e é denominada de imaginária, o que Freud chamou de narcisismo, e que serve como muro da linguagem na medida em que a função do eu é de desconhecimento. Há uma outra relação que se interpõe e produz furo no muro: a relação simbólica, estabelecida entre o Outro e o sujeito. Eis aí situado o inconsciente.
Essas relações não se dão no ar. São formuladas com base na clínica, da escuta de pacientes que vem contar (no sentido polissêmico da palavra). No entanto, a leitura que tenho realizado de Lacan, é de que há uma articulação com fundamentos lógicos para a construção do esquema L ou mesmo de outros esquemas que emergem no decorrer de sua obra. Tais formalizações ressoam em seu intento de retorno à obra de Freud, ao pé da letra freudiana. E se há pé na letra, é para que caminhe e deixe rastro.
Letra e carta são homônimas em francês, sendo conjugadas em lettre. O esquema L é elaborado a partir da leitura que Lacan faz do automatismo de repetição em "Além do princípio do prazer", de Freud, e do conto "A carta roubada", de Edgar Allan Poe, elaboração essa que está contida no livro Escritos, e recebeu o nome de "O seminário sobre 'A carta roubada'". No conto de Poe, o que há é o vislumbre da determinação simbólica a partir do acaso. O caos passa a ser ordenado pelo símbolo.
Seguindo o rastro da letra, me deparei com um escrito, realizado por Agnès Sofiyana em 2003, intitulado "O corte e a Lei" (La coupure et la Loi, no original), que me auxiliou na leitura do escrito de Lacan, principalmente na operatória matemática utilizada para a formulação do grafo. Assim, fiz a tradução do francês para o português no texto que segue e que, ouso dizer, pois é o que escutei deste escrito de Lacan, de que é a base para a psicanálise como ciência conjectural.
O corte e a Lei, escrito por Agnès Sofiyana e traduzido por Victor Hugo Martins.
Texto original em francês: https://www.psychanalyse-paris.com/La-coupure-et-la-Loi.html
Palavras-chave: Jacques Lacan, Interpretação psicanalítica, Significante
Esta intervenção é inspirada em uma demanda que Paul Papahagi fez sobre as histórias alfa e ômega de Lacan na introdução ao seu seminário sobre a Carta Roubada, datado de 26 de abril de 1955, e abrindo os Escritos de 1966.
O seminário
No início do seu seminário sobre “A Carta Roubada”, Lacan expõe claramente a sua ambição de colocar em evidência o automatismo de repetição através da insistência da cadeia significante, caracterizada pela ordem simbólica, ou seja, o “pacto que liga os sujeitos uns aos outros em uma ação” (Lacan, Os escritos técnicos de Freud, A ordem simbólica, 1954, Seuil, p. 354), dito de outra forma, as leis ou os contratos inconscientes que regem as ligações automáticas detectadas nas situações repetidas no seio do conto de Edgar Allan Poe.
Lacan interpreta o primeiro roubo da Carta (o ministro rouba a Carta debaixo do nariz da rainha, enquanto o rei está em condições de ver) como a cena primitiva e o segundo roubo (Dupin rouba a Carta do ministro e a substitui por uma falsa, enquanto a Carta está em condições de ser vista) como uma repetição da cena primitiva.
É portanto "a intersubjetividade onde as duas ações se motivam mutuamente que queremos destacar, e os três termos pelos quais as estrutura" na medida em que em cada um dos roubos, as ações “respondem tanto aos três tempos lógicos através dos quais a decisão se precipita, como aos três lugares que ela [a Carta] atribui aos sujeitos que decidem" (pág. 15). Para mais detalhes sobre os três lugares ocupados pelos protagonistas de cada um dos roubos, remetemos para Nathalie Charraud, Lacan e a matemática, páginas 19 a 22, onde a autora observa que a Carta persiste no lugar central, depois que os protagonistas repetem um jogo de revezamentos (ou dança das cadeiras) quanto aos lugares que ocupam em relação à Carta. Assim, “seu movimento é determinado pelo lugar que vem a ocupar o significante puro que é a Carta roubada, em seu trio" e é precisamente essa persistência do significante que permite à Lacan ver um automatismo de repetição, no sentido freudiano.
Sem ir muito longe no nosso desenvolvimento, digamos apenas que a Carta ocupa o lugar do significante puro, o lugar do objeto real que escapa embora a repetição pretenda acessá-lo. E esta escapada do significante puro não é senão uma consequência da determinação simbólica, isto é, da supremacia do simbólico sobre o imaginário e o real. É o que se discute na demonstração de Lacan de sua introdução e que ele desenvolverá, entre outras coisas, durante suas intervenções em Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, em 1964, e especialmente com sua descoberta da topologia do nó borromeano, em que o imaginário domina o real, o simbólico domina o imaginário, enquanto o real domina o simbólico.
Introdução
"O sistema Ψ, antecessor do inconsciente, manifesta a sua originalidade, de poder contentar-se apenas em encontrar o objeto fundamentalmente perdido" (p. 45). Isso nos ensina sobre uma diferença entre reminiscência e repetição, estando a primeira ligada ao surgimento de uma memória, por mais imprecisa ou imaginária que seja, enquanto a segunda está ligada a uma re-demanda (do latim re-petere), ação que visa refazer, ou seja, produzir uma cópia, do que existia anteriormente.
Refazer, isto é, fazer de novo, criar de novo para conseguir o que já não existe mais. Isso evidencia então a relação binária ausência/presença que Freud havia identificado em seu neto e que hoje chamamos de Fort-da: o Um da cisão, da ruptura, da falta que faz emergir a abertura da ausência: “é justamente do que não foi, procede o que se repete” (p.43).
Ora, a repetição é necessariamente uma repetição simbólica, é o que nos diz Lacan a partir da sua leitura de Freud. “O homem dedica literalmente o seu tempo à implantação da alternativa estrutural onde a presença e a ausência atendem uma à outra. É no momento da sua conjunção essencial, e por assim dizer, no ponto zero do desejo, que o objeto humano cai sob a influência da apreensão, que, anulando a sua propriedade natural, o escraviza doravante às condições do símbolo.” (p. 46) Lacan aqui chama a atenção para a ideia de que a ordem simbólica não é constituída pelo homem, mas o constitui, assim como o desejo é levado para a ordem simbólica, cujas estruturações correspondem a uma lógica da linguagem e, portanto, abrem certas combinações para as escolhas do sujeito ao mesmo tempo que proíbem outras.
Para melhor compreender essa sobredeterminação da função simbólica, Lacan sugere ilustrá-la com uma sucessão de traços distribuídos ao acaso (entre aspas no texto) de + e - simbolizando presença e ausência, única alternativa fundamental do significante, de ser ou não ser na palavra.
Vejamos um exemplo:
Primeira sintaxe
Se considerarmos grupos de dois símbolos, caímos imediatamente num empate com quatro resultados (++, - -, +-, -+) que não fornecem qualquer elemento de discurso.
Por outro lado, se considerarmos sequências com três termos, surgem possibilidades e impossibilidades de sucessão que fazem sentido, no que diz respeito ao tempo lógico: o primeiro tempo é o momento de olhar, o segundo, o tempo de compreender e o terceiro, o momento de concluir. E é só no último compasso, no momento de concluir, que uma sequência ganha sentido. É o que nos lembra Lacan em Tempo Lógico, p. 202: “Mas captar na modulação do tempo a própria função pela qual cada um desses momentos, na passagem para o seguinte, é reabsorvido, restando apenas o último que os absorve; é restaurar a sua sucessão real e compreender verdadeiramente a sua gênese em movimento lógico”. Isto é o que chamaremos posteriormente de Regra do Tempo Lógico, RTL.
Nomeemos então (1) as sequências definidas pela simetria da constância (+++, ---), (3) aquelas definidas pela simetria da alternância (+-+, -+-) e (2) aquelas definidas por dissimetria ou ímpar (em inglês odd, que Baudelaire traduz como bizarro em La Lettre) (++-, +- -, -++, - -+) e indiquemos em nosso exemplo as sucessões de sequências, sabendo que é sempre o terceiro tempo que indica a natureza da sequência, conforme RTL:
Primeira lei
Embora as sequências de + e - sejam determinadas ao acaso, esta notação de três tempos resulta em possibilidades e impossibilidades de sucessão. Por exemplo, começando com uma sequência (1), seguido de um número par de sequências (2), necessariamente tornará impossível uma sequência (3): depois de + + + - - + + só é possível (1) com + ou (2) com -. Assim, partindo de uma sequência (1), um número par de sequências (2) torna possível uma sequência (1) ou (2); e um número ímpar de sequências (2) torna possível uma sequência (3) ou (2).
Deduzimos um grafo orientado de possibilidades, no qual a escrita de (2) no topo e (2) na parte inferior é necessária para dar conta fielmente das possibilidades e impossibilidades de sucessão, levando em consideração as propriedades gramaticais da cadeia.
Este grafo indica, portanto, a existência de uma ligação entre a memória e a lei: a lei está subordinada à sucessão dos símbolos + e -, o que equivale a dizer que o número da sequência (2), par ou ímpar, influencia a possibilidade da sequência seguinte; nesse sentido, lembrar o número par ou ímpar da sequência (2) é antecipar, graças à lei, a impossibilidade de sucessão de uma sequência em três.
Lacan, portanto, parte de uma sucessão aleatória de + e - que define uma sucessão binária. Pela construção de sequências e considerando apenas o terceiro tempo, aquele que coincide com o momento de conclusão, passa-se para uma sucessão ternária (1, 2 e 3) e libera-se assim uma primeira lei, engendrada pelo corte de RTL e definida por impossibilidades de sucessão, portanto por certas impossibilidades de conclusão.
Segunda sintaxe
Lacan aprofunda o processo visando revelar a natureza do significante, embora esse processo torne a determinação simbólica mais opaca para apreensão. Consideremos a nova série constituída em uma sucessão de sequências (1), (2) e (3). No exemplo dado anteriormente, esta série é portanto:
Consideremos o salto feito do primeiro para o terceiro tempo e instalemos uma segunda sintaxe para ler a sequência aleatória inicial de outra perspectiva:
– Chamemos de α os quatro saltos que nos permitem passar de uma simetria para uma simetria: 1 para 1, 1 para 3, 3 para 1 e 3 para 3 (note que existem exatamente quatro casos que definem um α: 1-1-1, 1-2-3, 3-2-1, 3-3-3);
– Chamemos β os dois saltos que nos permitem passar da simetria à assimetria: 1 para 2 e 3 para 2 (há exatamente quatro casos que definem β: 1-1-2, 1-2-2, 3-3-2, 3-2-2);
– Chamemos γ ao salto que nos permite passar de uma dissimetria a uma dissimetria: 2 para 2 (há exatamente quatro casos que definem um γ: 2-3-2, 2-1-2, e dois casos 2-2-2 dependendo se o primeiro (2) está na parte superior ou inferior do grafo);
– Chamemos de δ os dois saltos que nos permitem passar da assimetria a uma simetria: 2 para 1 e 2 para 3 (há exatamente quatro casos que definem um δ: 2-3-3, 2-2-1, 2-1-1, 2-2-3).
Esta nova sintaxe estabelece uma equiprobabilidade dos quatro saltos α, β, γ, δ, uma vez que cada uma das quatro letras gregas é realizável de acordo com quatro casos favoráveis. Vamos então aplicar RTL a esta sintaxe e escrever o que ela fornece em nosso exemplo:
Segunda lei
À série do conjunto +, -, associamos portanto uma série do conjunto 1, 2, 3 e a esta nova série está agora associada uma série do conjunto α, β, γ, δ. Analisemos mais de perto as possibilidades de sucessão destas quatro letras gregas, para dar conta da existência de uma segunda lei, ligada à quebra gerada pela segunda sintaxe.
Para identificar qualquer lei relativa ao aparecimento de α a δ, devemos proceder de forma organizada e seguir no grafo da primeira lei, as possibilidades de sucessão das sequências 1, 2 e 3.
Por exemplo, se a série começa com um α (quatro saltos favoráveis), que letras de α a δ podem seguir-se? Então, começando com α: 1-...-1, pode seguir, de acordo com o grafo, um 2 ou um 1. Se o 2 seguiu, pode seguir um 3 ou um 2, daí o aparecimento de um salto α ou um salto β. O mesmo para o caso em que 1 seguiu 1.
Podemos, portanto, construir primeiro as sucessões possíveis com β, γ e δ. No entanto, parece que quando escrevemos todas as eventualidades, que qualquer salto α, β, γ ou δ pode ser seguido por qualquer outro salto, enquanto o salto seguinte deixa espaço para apenas dois casos possíveis, excluindo dois outros. Com efeito, no exemplo detalhado acima, o salto α pode ser seguido por um α, um β, um γ ou um δ, enquanto na terceira posição, no terceiro salto aparecem apenas α’s ou β’s.
Depois de efetuadas as verificações das demais possibilidades de salto associadas a cada uma das letras, surge uma lei que é a seguinte: "acontece que, ao contrário do terceiro tempo, ou seja, o tempo que constitui o binário, está sujeito a uma lei de exclusão, o que significa que de um α ou de um δ só podemos obter um α ou um β, e que de um β ou um γ, só podemos obter γ ou δ”. O que Lacan transcreve em forma de quocientes na repartitória A∆.
Esta segunda lei, excluindo duas possibilidades no terceiro tempo, não é recíproca, mas retroativa, no sentido de que ao fixar o terceiro tempo, duas letras são então excluídas do primeiro tempo.
A partir da retroação desta segunda lei, Lacan está interessado no que aconteceria se fixássemos o primeiro tempo e o quarto tempo de uma possível sucessão das quatro letras gregas. Para fixar o 1º e o 4º termo de uma sucessão, o 1º lugar determina duas escolhas no 3º lugar e o 4º colocado exclui duas possibilidades do segundo lugar.
Refizemos os ‘cálculos’ e elaboramos um quadro resumo dos 64 casos possíveis, fixando o primeiro e o quarto tempos (note que se não houvesse impossíveis, teria havido 4 x 4 x 4 x 4 = 256 casos possíveis de sucessão):
Nas colunas ‘excluídos [exclues]’ são indicadas na primeira linha a letra excluída do segundo e terceiro lugares e na segunda linha as outras duas letras excluídas respectivamente do segundo e terceiro lugares. Nesta tabela, as sequências de quatro letras que podem ser escritas XXYY, com X = Y eventualmente, são em número de oito (em azul na tabela), enquanto deveriam ser 16 de acordo com os cálculos de combinatória da matemática clássica. Os oito casos favoráveis à escrita XXYY estão em oito células que Lacan extrai da tabela geral e chama de tabela O, sendo seu complemento então a tabela Ω.
O que isso quer dizer?
“Isso poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo, mostrando que este se funda na atualidade que tem em seu presente o futuro anterior. Que no intervalo desse passado que já é ao que projeta, se abre um buraco que constitui um certo caput mortuum do significante [...], isso basta para suspendê-lo da ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno” (p. 50).
E Lacan acrescenta ainda “vemos, portanto, se desatar do real uma determinação simbólica que, por mais firme que seja em registrar qualquer parcialidade do real, apenas produz melhor as disparidades que traz consigo” (p. 51) então “somente exemplos de conservação, indefinidos na sua suspensão das exigências da cadeia simbólica [...] permitem-nos conceber onde se localiza o desejo inconsciente na sua persistência indestrutível” (p. 52).
Para entender que nesta série por ‘acaso’, se fizermos cortes relevantes ligados ao tempo e aos lugares dos significantes na estrutura, então aparecem leis definidas pelas ausências de certos significantes, mesmo que tentemos acessá-lo definindo conscientemente o que planejamos alcançar. Esses significantes eloquentes, na sua ausência, introduzem inevitavelmente o automatismo de repetição.
Além disso, na associação livre, os significantes seguem um após o outro, de acordo com um acaso que nada tem a ver com a aleatoriedade, mas que transpira a determinação simbólica ligada a um real que se perde e que não pode ser dito de outra forma senão pela insistência de sua ausência, até o próprio significante primário. A repetição é a atração simbólica porque o que se destaca pela sua ausência não pode ser encontrado na série do acaso e é perdido a cada lançamento de dados.
“O que está escondido é apenas o que falta no seu lugar” e este é o ponto crucial que deve fazer-nos centrar a nossa atenção na certeza de não ver ou de não encontrar o que, no entanto, está aí, diante dos nossos olhos e que nos é invisível, como a Carta Roubada. O lugar do objeto, assim como o do significante, no imaginário e no simbólico, impõe os cortes e as mudanças na sintaxe que são a essência da determinação simbólica. Este não é constituído pelo falante, mas sim pelo constituinte, de forma subjetiva.
Enfim
Stéphane Mallarmé escreveu em 1897 o poema que começa com “Um lance de dados nunca abolirá o acaso” e termina com “Cada pensamento emite um lance de dados”. Contudo, as leis da determinação simbólica são anteriores a qualquer constatação real do acaso, no sentido de que um número nunca é escolhido ao acaso: mesmo que existam estranhas coincidências que se possa acreditar estarem ligadas ao destino ou mesmo que existam leis matemáticas reais que permitam prever a probabilidade do aparecimento de um símbolo numa série finita, só o corte gera a lei e só exibindo-a na realidade é que esse corte pode revelar a ligação entre o simbólico e o imaginário.
Assim, pode acontecer que tenhamos a íntima convicção de sermos capazes de imitar o acaso, porque as leis da aleatoriedade nos são conhecidas matematicamente, que estas são apenas cálculos e previsões e que conhecendo as minhas regras do tempo lógico e as minhas tabuadas, sou sem dúvida capaz de apreender o que me escapa e de antecipar o movimento do outro.
Porém, o corte que o analista instaura no exato momento em que essa “lei imaginária” se ancora no discurso, irá perturbar esse certo saber sobre o sintoma, ligado ao acaso como real, e zerar os contadores. Isto enquadra-se perfeitamente na importância do tempo lógico na análise e no que Paul Papahagi inaugurou uma noite num seminário com o “moinho duplo”: a verdade está alhures...
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