O sono da razão
Escolhi, para adentrar em meu tema, a gravura de Francisco de Goya, intitulada “O sono da razão produz monstros”, uma vez que os significantes desta fórmula, o sono e a razão, nos são pertinentes. Minha pesquisa concerne ao crivo da psicanálise e, atualmente, estou me inclinando sobre as práticas de diagnóstico provenientes do discurso biomédico, em específico do TDAH, onde a razão é que produz o sono: vemos aos tantos, em escolas, crianças que possuem laudo deste transtorno e que, sob a pretensa racionalidade da medicina, são medicalizadas com remédios tarja preta: depakene, rivotril e ritalina; psicoestimulantes que causam sonolência.
Digo pretensa racionalidade porque, sem saber, o médico é convidado a ocupar um lugar de saber, o lugar onde reside a decodificação do apelo, o lugar do código, a que chamamos, em psicanálise, de Outro. É desse lugar que se produz, por efeito retroativo, o significado do Outro: onde o Outro responde à demanda. Enquanto psicanalistas, nosso lugar se encontra alhures: o psicanalista é ignorante. Não se trata de uma ignorância no sentido de um saber esvaziado, mas da ignorância da verdade do sujeito e que recusa a resposta à demanda, para que o sujeito do inconsciente advenha, neste efeito a que chamamos desejo.
Tomo por reflexão, este significado do Outro formulado como escritura, nos termos em que Barthes a coloca em A morte do autor, ou seja, enquanto a destruição da voz, onde se perde toda identidade, a começar pela do corpo que escreve. Para Barthes, escrever designa uma operação performativa, na qual a enunciação tem como enunciado o ato pelo qual se profere. A enunciação fica escamoteada por detrás do diagnóstico que opera enquanto enunciado que diz da verdade do sujeito, atribuindo-lhe identificação a um transtorno.
Não é difícil de encontrar, inclusive, “benefícios” de tal prática: a depender do diagnóstico que lhe é atribuído, a criança recebe auxílio de segundo professor em sala de aula, recebe Benefício de Prestação Continuada (BPC), assessoria psicopedagógica, receituário medicamentoso: em suma, recebe, do Outro, um significante que o signifique. Operação na qual implica, necessariamente, alienação.
Em sua Aula, Barthes diz que a oposição das ciências às letras põe frente a frente lugares diferentes de fala. O saber, diz ele, para o discurso da ciência, ou segundo certo discurso da ciência, é um enunciado. Na escritura, o saber é uma enunciação. Entretanto, o que busco destacar aqui, é que nessa escritura específica emitida em um laudo, perde-se seu sentido de enunciação e o toma como enunciado que encerra em si mesma um significado. A enunciação expõe o lugar do sujeito e reconhece que a língua é um halo de implicações, de efeitos, e assume o fazer ouvir um sujeito ao mesmo tempo insistente e instável, desconhecido e no entanto reconhecido segundo uma inquietante familiaridade: as palavras não são mais concebidas como simples instrumentos: a escritura, como enunciação, faz do saber uma festa. O que o laudo faz é esconder que “o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura” (Barthes, 1984/2004, p. 62) e que a ciência é definida, simplesmente, por sua determinação social.
Com isso, o trabalho que se impõe é analisar como essa escritura específica funciona. Já que
A tarefa que se oferece ao discurso estrutural consiste em tornar-se inteiramente homogêneo a seu objeto; essa tarefa só pode ser efetuada por duas vias: ou por uma formalização exaustiva, ou por uma escritura integral. Nessa segunda hipótese, a ciência se tornará a literatura, na medida em que a literatura já é, sempre foi a ciência; pois o que hoje descobrem as ciências humanas, a literatura sempre soube; a diferença é que ela não o disse, escreveu (Barthes, 1984/2004, p. 12)
Em outras palavras, o trabalho não vai no sentido de dar uma resposta definitiva à questão que pode ser resumida em: “o que essa criança quer?”, mas em desnaturalizar o diagnóstico como sendo apartado da literatura, como se não fosse da ordem simbólica. Mas, como tudo o que é humano, está imbricado em uma estrutura significante; e este, o significante, está inscrito na lei que o define como sempre remetido a outro significante, deixando um rastro, um traço mnêmico, uma memória.
Ao final de sua Aula, Barthes (1977, p. 44) articula memória e corpo ao contar do momento que lia A Montanha Mágica de Thomas Mann e, ao se deparar com que o herói do livro, Hans Castorp, sofria de tuberculose, numa espécie de Eureka!, diz “percebi então com estupefação (só as evidências podem estupefazer) que meu próprio corpo era histórico”, ao associar ao momento em que ele mesmo, Barthes, contraiu a doença.
Em seu ensaio sobre atos performativos e constituição do gênero, Butler (1988, p. 6) demonstra como o gênero é uma ficção em que “a própria construção faz com que se acredite que ela é necessária e natural”, ficção essa construída a partir da historicização dos atos do corpo. Embora seu enfoque esteja centrado em desconstruir a generificação, sua elaboração é atravessada pelo tema do corpo, e daí advém o interesse em tomá-la como referência.
É pela fenomenologia que o tema do corpo emerge em Butler (1988, p. 4) que, junto com Merleau-Ponty, afirma que “o corpo é mais do que uma espécie natural – é uma ideia histórica”. Também, com Beauvoir, Butler (1988, p. 4) compreende o corpo como “processo ativo de corporificação de certas possibilidades culturais e históricas” onde a perspectiva convencional dos atos precisa ser ampliada para significar “tanto aquilo que constitui o significado quanto o modo como o significado é performado e atua”. Seguindo essa linha, o corpo não é determinado por nenhuma essência interior, mas uma materialidade que assume significado: “Não se é simplesmente um corpo, mas, [...] faz-se o próprio corpo” (Butler, 1988, p. 5).
Mas fazer o próprio corpo não basta, é preciso desfazê-lo. Em outras palavras, delimitá-lo na ordem que lhe é própria, a ordem do símbolo. Derrida construiu seu conceito de desconstrução ao partir da análise do que decorre na categorização binária proveniente do par Homem versus Inumano, onde na categoria Homem se encontram o Logos, o comando, a cultura, a mente; e no Inumano a Phonè, a obediência, o instinto, o corpo. Nesse quadro bipartido, ambos os termos remetem um ao outro, de modo que funciona como uma malha que captura e envolve o elemento que cai sob ela, designando-o: é isto ou aquilo.
Ora, se temos, através dessa bipartição, de um lado a mente, de outro, o corpo, não se faz outra coisa que não seja a de impô-la sob a forma de uma dialética, onde a mente é mestre do corpo. Nesses termos, estamos inseridos na dimensão imaginária em que o outro é tomado como semelhante a que sua imagem especularizada sofre a captura na forma de uma série de sinais, sejam eles de um déficit de atenção ou de uma hiperatividade, seja lá o que isto designe, para transformá-lo em um TDAH.
Desse lugar, vemos o nó de servidão imaginária que Kant tenta se desvencilhar com seu Esclarecimento [Aufklärung], mas que o faz somente na medida em que se submete à uma outra servidão: para Kant, é o mestre quem liberta o escravo. Esclareço: Kant (1783/1995, p. 110-111) escreve que “Os homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado”, porém, um pouco antes, no mesmo parágrafo de seu texto, exalta com louvor e agradecimento o príncipe Frederico que “deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral”, ao deixar que o povo decida em matéria religiosa. Uma maneira bonita de dizer “crede no Deus que quiserdes, desde que me sirva”. Evoco Kant para dizer que não é por acaso que o lugar do Deus morto na modernidade é ocupado pela ciência.
Retorno à fórmula de Goya para atá-la em outro ponto: “O sono da razão produz monstros que produzem sono”, ou, com Freud, dizer que todo sonho é a realização de um desejo, em última instância, o desejo de continuar dormindo.
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